MURO DE
SILÊNCIO: A PALAVRA DA CRIANÇA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL
Roberto
Borba Moreira Filho
Resumo:
Em processos judiciais que têm por objeto crimes sexuais contra
crianças, elas, as vítimas infantis, são frequentemente expostas
aos procedimentos essenciais da justiça criminal. O processo é
conduzido por um duplo interesse: de um lado a criança ofendida e a
busca da verdade real e de outro a proteção dos direitos
constitucionais do acusado no sentido de um julgamento fundado na
presunção de inocência. Diante desse cenário, somado com a fase
de desenvolvimento da criança e a experiência confusa e traumática
do abuso, como considerar a sua palavra no processo judicial de modo
a esclarecer os fatos? O projeto tem por objetivo analisar como a
palavra da criança vítima de abuso sexual tem força probatória no
processo judicial. Dessa maneira, os objetivos específicos são
explicar aspectos da legislação penal acerca da repressão aos
crimes praticados contra a dignidade sexual, analisar os efeitos
comportamentais na criança e a revelação do abuso sexual e
comentar a credibilidade do testemunho das crianças no contexto
judiciário e a sua palavra como único meio de prova.
Palavras-Chave:
Abuso. Criança. Vítima
Abuso Sexual.
Abstract:
In court cases involving sex offenses against children, child victims
are often exposed to criminal justice procedures. The process is
sterred by a double interest: on one side the offended child and the
search for real truth and on the other the protection of the
constitutional rights of the accused in the sense of a judgment based
on the presumption of innocence. Given this scenario, coupled with
the developmental phase of the child and the confused and traumatic
experience of abuse, how to consider his word in the judicial process
in order to clarify the facts? The project aims to analyze how the
word of the child victim of sexual abuse has probative force in the
judicial process. In this way, the specific objectives are to explain
aspects of criminal law regarding repression of crimes against sexual
dignity, to analyze the behavioral effects on the child and the
revelation of sexual abuse, and to comment
on
the credibility of children's testimony in the judicial context and
their word as the sole means of proof.
Keywords:
Abuse. Child. Word.
1
INTRODUÇÃO
O aspecto que torna o abuso
sexual infantil especialmente diferente de outros casos criminais é
que as vítimas são crianças. Muitas vezes estão ainda em fase
pré-escolar e não desenvolveram as habilidades com a linguagem,
sendo difícil entender e comunicar a sua experiência. A situação
se torna mais delicada, e traumática, quando inseridas em um
processo criminal. O testemunho da criança é fundamental no
processo.
Geralmente, o fato criminoso é
praticado na clandestinidade e a criança é a única testemunha
factual contra o suspeito da agressão. Uma persecução penal
bem-sucedida depende de quão fidedigna, confiável e autêntica a
criança seja. Isto toma um relevo especial e verdadeiro quando não
há evidências periciais disponíveis e o caso se baseia na palavra
da criança contra o suspeito.
O abuso pode repercutir no corpo
da criança como dores, inchaços, sangramentos, doenças sexualmente
transmissíveis, gravidez etc., bem como pode interferir de modo
significativo no desenvolvimento da sua personalidade. Contudo, a
depender do tipo de violência praticada, ou pelo tempo entre o abuso
e a revelação, evidência nenhuma subsiste de forma a comprovar a
violência, sendo que o exame pericial não restará como prova cabal
e suficiente do delito praticado. Resta a palavra da vítima como
prova, tornando-se necessário considerar tal aspecto subjetivo.
A partir de denúncias
registradas no Disque-Denúncia Nacional, o Disque 100, estima-se
que, diariamente, no Brasil mais de 50 crianças são vítimas de
violência sexual. Entretanto, o cenário não é preciso. Esse
número é consideravelmente limitado, a ponta de um gigantesco
iceberg, pois somente 10% dos casos são revelados ou chegam ao
conhecimento da justiça criminal. Nada se sabe dos outros 90% que
não foram detectados. Ou seja, o que se conhece do perfil, da
natureza e dos motivos de um abusador são de estudos relacionados
aos casos que chegam ao conhecimento das autoridades. Sabe-se da
dimensão do problema, mas pouco se compreende da real e veraz
situação.
As cidades de São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul lideram o ranking de
recebimento de denúncias por meio do Disque 100, enquanto as cidades
de Roraima, Amapá, Tocantins, Acre e Sergipe apresentam os menores
registros (CIDADANIA E JUSTIÇA, 2017). O abuso sexual infantil não
tem classe social, pois acontece em todas as classes. Também não
possui raça, cultura, gênero ou escolaridade. É um fenômeno
social presente onde presentes estão seres humanos.
Os maiores riscos de abuso sexual
infantil estão dentro da comunidade local da criança, pois 87% da
violência é cometida por alguém próximo a elas, seja um familiar,
amigo ou vizinho. A maioria dos agressores, cerca de 63%, é homem, e
os adultos com idades entre 18 e 40 anos somam 42%. As crianças
entre a faixa etária de 04 a 11 anos são as mais atingidas, cerca
de 40%. As meninas somam 73%, enquanto meninos e meninas negras
chegam a quase 60% dos atingidos (CIDADANIA E JUSTIÇA, 2017).
Quando o abuso é praticado
dentro da casa da criança, 49% delas possuem entre 02 a 05 anos de
idade e, em média, 24% dos abusos os próprios pais ou padrastos são
os agressores, sendo que quando neste sentido, apenas 2% dos casos
chegam a ser denunciados à polícia (CIDADANIA E JUSTIÇA, 2017).
Um importante desafio é
conseguir identificar um caso de abuso sexual. Pela fragilidade da
idade, muitas crianças têm medo, vergonha e, por isso, considerável
parte dos abusos não são revelados. Um grande obstáculo é quando
não há nada no comportamento que indique se ela foi ou está sendo
vítima de abusos sexuais. Entretanto, há sinais que podem revelar
que uma violência sexual foi ou está sendo praticada contra elas. O
comportamento da criança revela, ou do próprio agressor; a criança
também pode falar de forma explícita aos pais, parentes, amigos,
professor, médico; pode fazer perguntas que sinalizam claramente o
seu envolvimento em atividades sexuais. Necessário que ela seja
submetida a certos questionamentos, sendo indispensável saber como
lhe perguntar sobre a ocorrência de um abuso.
Assim, que a criança revela o
abuso, é fundamental que isso seja levado às autoridades
competentes e especializadas, sendo que um aspecto delicado e
degradante é que ela deve reprisar a situação muitas outras vezes,
pois tem de falar para os pais, médicos, psicólogos, delegados,
advogados, promotores, juízes etc. Há um longo caminho a percorrer.
A Constituição Federal da
República de 1988 traz, em seu primeiro artigo, o princípio da
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito. A conduta que viola a liberdade, dignidade e
desenvolvimento sexual das crianças, viola o seu direito à
dignidade como pessoa humana, fere frontalmente princípios basilares
da Carta Cidadã e desrespeita os fundamentos essenciais do Estatuto
da Criança e do Adolescente. Ambos os dispositivos legais protegem e
defendem seus interesses e as trazem como sujeitos de direitos.
Manter intocável a pureza das crianças é questão de ordem
pública, um aspecto de interesse coletivo.
Entretanto, não basta apenas ter
uma legislação convincente e séria, é fundamental que o Estado
atue de forma a articular políticas públicas de ordem prática que
assegurem que tais direitos e garantias essenciais sejam respeitados,
principalmente o sentido de manter sagrada a inocência e candura da
infância.
2
A CRIANÇA E O ABUSO SEXUAL
Abuso sexual infantil é uma
preocupação mundial. Problema traiçoeiro, contumaz e grave que
afeta expressivo número de crianças, que pode gerar consequências
psicológicas persistentes até a idade adulta. O abuso sexual
infantil é definido pelo Departamento de Saúde do Reino Unido
(2003, apud
SANDERSON, 2005, p. 05) da seguinte forma:
Forçar
ou incitar uma criança a tomar parte em atividades sexuais, estejam
ou não cientes do que está acontecendo. As atividades podem
envolver contato físico, incluindo atos penetrantes e atos
não-penetrantes. Pode incluir atividades sem contato, taos como
levar a criança a olhar ou a produzir material pornográfico ou a
assistir a atividades sexuais ou encorajá-la a comportar-se de
maneiras sexualmente inapropriadas.
Conti (2008, p. 65) assim o
conceitua:
Uma
situação em que uma criança ou adolescente é usado para
gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente mais
velho, baseado em uma relação de poder que pode incluir desde
carícias, manipulação da genitália, exploração sexual,
voyeurismo,
pornografia e exibicionismo, até o ato sexual com ou sem penetração,
com ou sem violência.
A gama de atividades sexuais
realizada em crianças, em que elas são usadas como objetos de
satisfação sexual, é bastante ampla e inclui atos sem contato
físico (gestos sexuais sugestivos, cantadas obscenas, exibicionismos
etc.) e com contato físico (beijos, carícias, masturbação,
cópulas oral, anal, vaginal). Aquele que envolve a criança nessas
atividades sexuais incompatíveis com sua idade e com seu
desenvolvimento psicossexual, as quais ela não tem nenhuma
compreensão da situação em que está inserida, dentro ou fora do
âmbito familiar, pratica abuso sexual infantil.
A legislação brasileira veda
tais práticas, sendo que, nos últimos anos, houve mudanças
consideráveis no Código Penal a fim de prevenir e punir abusadores
sexuais infantis. O estupro de vulnerável é o primeiro delito
previsto no Capítulo II do Título VI do Código Penal, que
disciplina sobre os crimes sexuais contra vulnerável. Tutela-se a
liberdade sexual dos menores de 14 anos e daquelas pessoas
consideradas vulneráveis nos termos do Código Penal, conferindo
maior rigor ao preceito constitucional que diz que “a lei punirá
severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança
e do adolescente” (art. 227, § 4º).
A Lei 12.015/2009 provoca
mudanças no Título VI do Código Penal, revogando, alterando e
acrescentando certos artigos, adaptando o Código às transformações
comportamentais, em relação a sexualidade, da sociedade atual e,
não sendo menos importante, harmonizando-o às esteiras da
Constituição Federal de 1988.
A nomenclatura 'Dos Crimes Contra
os Costumes' foi substituída por 'Dos Crimes Contra a Dignidade
Sexual', conferindo sentidos diferentes aos tipos penais, florescendo
atenção ao indivíduo, e não apenas na moral pública sexual. A
nova Lei promove relevo à dignidade humana ao reconhecer, como
ensina Mirabete (2015, p. 1507), “a primazia do desenvolvimento
sadio da sexualidade e do exercício da liberdade sexual como bens
merecedores de proteção penal, por serem aspectos essenciais da
dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade”.
Um dos propósitos da lei
12.015/2009 foi criar uma maior repressão às crescentes violações
sexuais contra crianças e adolescentes. Anteriormente à referida
lei, não havia um tipo penal específico que tratasse sobre
vulneráveis, mas aquele que praticava atos previstos no art. 217-A,
inseria-se no crime de estupro (art. 213) ou no crime de atentado
violento ao pudor (art. 214) de acordo com a conduta então
praticada.
O advento da lei supracitada
incluiu novas figuras típicas específicas sobre vulneráveis e
revogou disposições anteriores. Todos os delitos previstos no
Capítulo II do Título VI do Código Penal foram inovações
trazidas pela referida lei. São eles: art. 217-A - Estupro de
vulnerável; art. 218 - Corrupção de menores; art. 218-A -
Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou
adolescente; art. 218-B - Favorecimento da prostituição ou de outra
forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de
vulnerável.
Salienta-se que vulnerável
significa descoberto, desprotegido, indefeso, suscetível, desarmado,
exposto, derrotável pela fragilidade que possui (FERREIRA, 1999).
Todas as vítimas dos crimes aqui citados são consideradas pelo
Código Penal como sendo vulneráveis, sendo que a vulnerabilidade é
de acordo com o sentido e fins de cada delito.
Presume-se violência absoluta em
condutas sexuais praticadas com menor de 14 anos e o seu
consentimento em nada reflete ao sistema jurídico-penal, ou seja, é
irrelevante o consentimento da vítima, ou mesmo, se já possua
experiências em relação ao sexo, e ainda que esteja se
prostituindo, o crime restará configurado quando o agente mantém
conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos.
A vulnerabilidade é apenas
relativizada quando há de se considerar as dúvidas quanto as
aparências em relação a certos menores, pois, apesar de ainda
serem menor de 14 anos, aparentam mais que a idade real, levando o
agente a incorrer em erro de tipo. Nesses casos, como ensina Nucci
(2016), em caso de erro invencível, afasta-se o dolo e a conduta
torna-se atípica por não ser admitida a modalidade culposa, ou
seja, o crime de estupro de vulnerável apenas admite sua
configuração se cometido de forma dolosa, não sendo prevista a
forma da culpa.
3
OS EFEITOS DO ABUSO SEXUAL NO COMPORTAMENTO E A REVELAÇÃO
A violência sexual é uma das
manifestações de violência mais covarde e amarga praticada contra
crianças, uma bruta e selvagem violação de direitos humanos.
Nenhuma criança está preparada para lidar com abuso sexual.
A criança é um sujeito em
desenvolvimento e por estar em fase de formação cognitiva e social,
em permanentes fases constitutivas, necessita de cuidados especiais,
de atenção e proteção. O pleno desenvolvimento, nas palavras de
Kung et al
(2009, p. 95), “requer que cada fase seja vivida, elaborada e
ultrapassada”. Cada fase deve ser vivida em harmonia com a sua
idade, com o mínimo de obstáculos que criem dificuldades à sua
evolução, para que a criança não fique presa a nenhuma de suas
fases. No entanto, algo que deve se manter intocável e sagrado,
independente do momento infantil, é a sua pureza, esta necessita,
definitivamente, ser protegida.
Os adultos devem ser vistos pelas
crianças como referências de valores éticos e morais. Elas
deveriam se sentir acolhidas, seguras e ainda que não saibam o
profundo significado de respeito, crianças devem se sentir
respeitadas pelos adultos. Ocorre que, quando vítimas de um abuso
sexual, elas são agredidas na essência de sua dignidade humana, são
silenciadas, estimuladas precocemente e covardemente violentadas.
O abuso sexual infantil pode
ocorrer dentro da família, por um pai, padrasto, irmão, tio ou
outro parente; ou fora de casa, por exemplo, por um amigo, vizinho,
professor ou qualquer pessoa estranha. Se praticado por pessoa que
tenha um relacionamento de proximidade, a criança sente-se traída e
abandonada, pois crianças tendem a confiar nos seus próximos,
assim, quanto maior a proximidade, maior o sentimento de traição e
abandono (SANDERSON, 2005). Ela pode se sentir desamparada, incapaz
de receber amor, atenção, afeição e carinho, ou seja,
necessidades básicas que precisam ser satisfeitas a fim de se ter um
desenvolvimento natural e condizente com a sua idade.
O abuso pode desenvolver muitos
sentimentos, pensamentos e comportamentos angustiantes. A criança é
maltratada em sua própria natureza, pois ela, como aclara Mollon
(2000 apud
SANDERSON, 2005, P. 168) “não é percebida como ela é. Sua
identidade real está sendo atacada [...]”. O abuso sexual faz a
criança perder algo do que ela é, e depois de perdida a
originalidade pode ser de difícil resgate. A criança se sentirá
confusa internamente, sendo incapaz de discernir o que é correto e o
que é errado, o que é apropriado e o que é inapropriado. A sua
essência e individualidade tornam-se invadidas por uma multidão de
sentimentos confusos e inoportunos para a sua idade e momento, sendo
que não há maturidade para lidar com isso.
A depender da idade em que a
criança foi submetida aos abusos sexuais, aquilo pode alterar,
inclusive, o seu desenvolvimento neurológico.
Se
o abuso ocorre durante períodos críticos de formação, quando o
cérebro está sendo fisicamente moldado, isso induz a efeitos
moleculares e neurobiológicos em cascata que, inevitavelmente,
alteram o desenvolvimento neural. Maus-tratos em uma idade precoce
pode ter efeitos negativos duradouros no desenvolvimento e na função
do cérebro de uma criança. (TEICHER, 2002, apud
SANDERSON, 2005, p. 171).
Os impactos causados pelo abuso
têm efeitos danosos que geram sentimentos de indignidade, baixo
autoestima, medo, embaraço, constrangimento, bloqueio, desconfiança,
culpa e vergonha (SANDERSON, 2005). O conjunto de tais sentimentos
podem tornar a criança retraída e com dificuldades de se relacionar
com outras crianças.
Ainda que a criança não
experimente a atividade sexual como abusiva, “isso não significa
que não tenha um impacto, se não a curto prazo, mas potencialmente
a longo prazo” (SANDERSON, 2005, p. 173). Algumas crianças
abusadas sexualmente se tornam pedófilas ou prostitutas, ou têm
outros problemas sérios quando atingem a idade adulta.
Os abusadores utilizam-se da
dificuldade de entendimento, principalmente quando a criança é
muito pequena, para praticar o abuso e a confusão criada dentro dela
funciona como um obstáculo que a impede de buscar ajuda daqueles que
poderiam lhe ajudar. Os molestadores de crianças podem deixá-las
muito aterrorizadas em contar o abuso, exercendo pressão sobre elas
com ameaças de morte inclusive.
Tabajaski, Paiva e Visnievski
(2010, p. 59) explicitam que:
Essa
confusão muitas vezes é reforçada pelas ameaças do abusador, que
frequentemente afirma que a criança será responsável pelas
consequências que possam ocorrer caso ela rompa com o silêncio,
revelando a situação abusiva. Assim, os sentimentos de culpa pela
ocorrência do abuso, associados ao medo de ser responsabilizada por
danos potenciais decorrentes da revelação, contribuem para a
manutenção da situação abusiva e perpetuação do silêncio.
As ameaças são usadas para
fortificar o sigilo, e o segredo é justamente aquilo que possibilita
a repetição das experiências abusivas. Conti (2008, p. 79) destaca
que “existe um ar de segredo entre a vítima e o abusador: um
verdadeiro muro de silêncio”.
Sanderson (2005, p. 181) explica
que para algumas crianças “é traumática a experiência e se
torna muito difícil revelar o abuso, pois se sentem envergonhadas,
culpadas ou têm medo de punição. Para outras, por serem ainda
muito pequenas, não entendem a situação e têm dificuldades em se
expressar verbalmente”.
A criança pode tentar comunicar
não apenas verbalmente, mas através de gestos ou desenhos por
exemplo. Somente quando um esforço especial ajuda a se sentir
segura, ela começa a falar livremente. Ainda que não fale, o abuso
provoca mudanças comportamentais que indicam sinais que algo de
errado está acontecendo.
De acordo com a Academia
Americana de Psiquiatria da Infância e Adolescência (2011) o abuso
sexual infantil pode desenvolver na criança comportamentos que devem
servir como alerta, sumarizados na sequência
-
interesse incomum em atividades sexuais ou evitamento de todas as
coisas de natureza sexual;
-
problemas de sono ou pesadelos;
-
depressão ou afastamento de amigos ou familiares;
-
sedução;
-
declarações de que seus corpos estão sujos ou lesionados, ou medo
de que haja algo de errado com eles na área genital;
-
recusa de ir à escola ou manifestar falta de concentração;
-
delinquência / problemas de conduta;
-
retraimento;
-
tornar-se alheia ou reprimida;
-
sentir medos inexplicáveis de determinados lugares ou pessoas;
-
aspectos do abuso sexual em desenhos, jogos, fantasias;
-
mudanças de personalidade;
-
agressividade incomum, ou
-
comportamento suicida
A criança que apresenta alguns
desses comportamentos de forma isolada não necessariamente indica
que está sendo vítima de abuso sexual, mas o conjunto de tais
sinais deve ser levado em consideração.
Se uma criança disser que foi
molestada, os pais devem tentar manter a calma e tranquilizá-la de
que o que aconteceu não foi culpa dela. Eles devem buscar exame
médico e consulta com profissionais especializados para o adequado
tratamento. Profissionais podem ajudar crianças violentadas
sexualmente a recuperar o sentimento de autoestima, lidar com
sentimentos de culpa pelo abuso e iniciar o processo de superação
do trauma. Esse tratamento pode ajudar a reduzir o risco de
desenvolver problemas sérios quando adulta.
4
O DEPOIMENTO DA CRIANÇA
A busca por profissionais que
auxiliem no tratamento das crianças abusadas sexualmente é
fundamental para reduzir os traumas e as consequências danosas do
abuso. No entanto, os molestadores necessitam ser punidos e para isso
é necessário comunicar o abuso às autoridades competentes a fim de
que o fato seja apurado a partir de investigações policiais e
instaurado um devido processo criminal.
Neste sentido Bittencourt (1997,
p. 62) argumenta que:
Muitas
pessoas têm dificuldade em comunicar possíveis casos de abuso
sexual infantil às autoridades. No entanto, as consequências de não
notificar podem ser fatais. Um outro fator que atrapalha a denúncia
é a descrença nas possíveis soluções, pois, na prática, nem
todos os casos são legalmente comprováveis em razão de não
existir uma estrutura judicial e policial satisfatória, sob o ponto
de vista da investigação.
Ainda que diante de todas as
dificuldades o fato precisa chegar ao poder judiciário, pois, na
Justiça, está a única forma de se punir legalmente o abusador.
Aberta uma ação penal, inicia-se um delicado momento para a vítima,
ela terá que relatar o acontecido para pessoas desconhecidas, na
presença de outras pessoas desconhecidas, numa dinâmica tensa e
inapropriada para a sua idade.
A criança está em uma posição
distinta de crescimento, e o Estado deve oferecer-lhe proteção
quando vítima de violência sexual. A sua inquirição no sistema
judiciário deve ser uma das respostas do Estado no sentido da sua
proteção, por isso deve ser realizada em seu próprio benefício,
sem prejudicar o seu desenvolvimento. A criança já carrega o fardo
da experiência negativa do abuso, e o processo judicial pode se
tornar prejudicial se conduzido de forma inadequada.
Em relação à escuta e a
condição peculiar da criança em desenvolvimento, Tabajaski, Paiva
e Visnievski (2010, p. 61) esclarecem:
Se
a escuta ou tomada de declarações de uma criança ou adolescente,
por exemplo, por agentes jurídicos, causar-lhes mais danos que a
situação abusiva, o estado, enquanto responsável pela proteção
da criança e do adolescente não estará cumprindo com seu objetivo
de realmente proteger.
Moreira, Lavarello e Lemos (2009,
p. 106) entendem que a justiça não deve adotar idênticos modelos
de ritos processuais para adultos e crianças em virtude de sua
condição peculiar de desenvolvimento. No entanto, asseveram que
apesar da criança “se encontrar comprometida e afetada pela
violência sexual não se pode desconsiderar o seu direito à
participação ativa nos processos, a ser ouvida e ter suas opiniões
devidamente consideradas”.
A Convenção Internacional sobre
os Direitos da Criança (CDC, 1989) bem como o Estatuto da Criança e
do Adolescente, instituído pela Lei 8.069/90, trazem, de forma
expressa, o direito das crianças, inclusive, no que se refere a sua
oitiva e ter suas opiniões ouvidas a serem consideradas.
É importante observar que até
chegar em momento processual, a criança fica sujeita a diversas
entrevistas por diversos profissionais e instituições, sendo
obrigada a repetir o acontecimento inúmeras vezes para pessoas
também por ela desconhecidas. Contudo, é, em juízo, que a sua
palavra tomará contornos de prova contra o agressor.
4.1
A PALAVRA COMO PROVA
Crimes sexuais são cometidos na
clandestinidade, em sigilo, em silêncio e, quando praticados contra
crianças, acontece ainda mais às escondidas. A palavra da criança
vítima é, muitas vezes, a evidência mais importante na acusação
de um abuso sexual e o único meio de prova. A criança e o suspeito
são geralmente as únicas testemunhas oculares em potencial e a
evidência física é, muitas vezes, inexistente. Tabajaski, Paiva e
Visnievski (2010, p. 59) destacam que:
Nos
casos em que a criança é submetida à violência sem vestígios,
como em atos libidinosos diversos da conjunção carnal (não há
lesões visíveis nem rompimento de hímen, ou resultado positivo de
coleta de esperma), o relato da criança, nomeando e identificando o
suposto agressor é considerado pelos operadores da justiça como
importante prova, independente de, muitas vezes, ser a única.
Diante da natureza oculta do
crime e, pelo fato de haver muito pouca, ou nenhuma, evidência do
ato, provar a materialidade do delito não é desafio fácil, ficando
o testemunho da criança o único substrato da acusação. Assim, a
sua fala é absolutamente crucial.
De modo geral, a palavra em juízo
das vítimas de um crime deve ser aceita com precauções, sendo
necessário cotejá-las com outros elementos contidos nos autos, ou
seja, constituirá prova de valor quando corroborada pelo conjunto
probatório. Mas nos delitos sexuais, pelas circunstâncias que se
consumam, sem a presença de outras testemunhas, a palavra da vítima
possui especial relevância. Têm-se os seguintes escólios
doutrinários: “Em certos casos, porém, é relevantíssima a
palavra da vítima do crime. Assim, naqueles delitos clandestinos qui
clam comittit solent
(crimes contra a liberdade sexual), que se cometem longe dos olhares
de testemunhas, a palavra da vítima é de valor extraordinário
[...]” (TOURINHO FILHO, 2012, p. 605). E ainda cumpre destacar:
“Como se tem assinalado na doutrina e jurisprudência, as
declarações do ofendido podem ser decisivas quando se trata de
delitos que se cometem às ocultas [...]” (MIRABETE, 2003, p. 547).
A palavra infantil tem relevante
valor na formação da convicção dos entendimentos
jurisprudenciais:
APELAÇÃO
CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL E LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE.
TRANSMISSÃO DE DOENÇA. HPV. FORMA QUALIFICADA DO CRIME. SENTENÇA
CONDENATÓRIA. FRAGILIDADE PROBATÓRIA. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO.
IMPOSSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS DEVIDAMENTE
COMPROVADAS. APLICAÇÃO DA PENA. PROPORCIONALIDADE. PENA PECUNIÁRIA.
NÃO INCIDÊNCIA. 1) Os crimes cometidos contra a dignidade sexual
são, normalmente, cometidos à escondida, sem testemunha presencial,
de sorte que a palavra da vítima assume especial relevo no contexto
probatório, mormente quando amparada pelas provas dos autos. […]
(STF – ARE: 1027330 AP – AMAPÁ 0000300-44.2013.8.02.0002,
Relator, Min: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 06/03017, Data de
Publicação: DJe: 046 10/03/2017. Editado).
APELAÇÃO
CRIME. ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ATOS LIBIDINOSOS). CONDENAÇÃO.
Mantida a condenação, diante do conjunto probatório, induvidoso em
relação à ocorrência do delito e a autoria. PALAVRA DA VÍTIMA.
CRIANÇA. VALOR PROBANTE. A palavra da vítima, ainda que se
constitua ela de uma criança de cinco anos de idade, autoriza a
condenação, notadamente quando se mostra uniforme e segura quanto à
ocorrência do delito e sua autoria. (Apelação Crime Nº
70075258822, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Genacéia da Silva Alberton, Julgado em 28/03/2018.
Editado).
O relato da criança, contudo,
deve ser firme e sereno, uniforme e harmônico, coerente e plausível,
em todos os seus momentos, de forma que alicerce a condenação do
ofensor. Caso contrário, é extremamente arriscado condenar uma
pessoa quando há declarações contraditórias, incoerentes e
imprecisas.
A valoração da palavra da
criança nos delitos sexuais justifica-se no sentido da sua harmonia
com os demais elementos existentes nos autos, formando uma estrutura
probatória coesa e coerente que deve prevalecer sobre suposta não
confissão do réu. Considerar a palavra da vítima infantil não
resulta da não valoração das declarações do acusado, mas sim, do
exame prudente e cuidadoso dos autos, inexistindo violação aos
direitos do ofensor.
6
CONCLUSÃO
Nos
últimos anos, apesar do aumento dramático no número de casos
envolvendo abuso sexual em crianças, a conscientização acerca da
atenção que deve ser dada em relação ao abuso também aumentou.
As crianças estão começando a falar e pais, assistentes sociais,
professores, profissionais de saúde, policiais, promotores de
justiça e juízes estão começando a ouvir, e como efeito há um
impacto significativo no sistema criminal.
É
incumbência da sociedade, dos pais, do estado, com toda a sua
estrutura pertinente, inclusive a justiça criminal, sustentarem
proteção às crianças vítimas e prevenir futuros abusos em outras
crianças. Às vítimas, apesar da delicada e complexa situação,
devem ser motivadas a falar dentro de uma condição, de um sistema e
de uma ordem apropriadas, muito embora a sua tenra idade. É preciso
determinar o peso e crédito dado às suas declarações,
considerando a sua idade e maturidade a as circunstâncias sob as
quais tais declarações foram feitas. Apesar da experiência
traumática para a criança abusada, sem a sua revelação e sem o
seu testemunho, nenhuma atitude poderá ser tomada e nenhuma acusação
pode ser consumada, e o agressor ficará impune.
No
entanto, a fim de acolher a palavra da criança, principalmente
quando este é o único meio de prova, a legislação e os tribunais
devem resolver o conflito entre dois interesses concorrentes: o
direito do réu de confrontar aquilo dito contra ele, dentro de um
contexto de princípios constitucionais de defesa, de forma que não
tenha os seus direitos ofendidos, e o respeito aos direitos das
crianças, fornecendo-lhes tal amparo que seja possível perceber
elementos que afastem qualquer suspeita de invenção, devaneio,
imaginação, e a verdade torne-se esclarecida, sendo o fato
submetido ao rigor da lei e julgado nas esteiras da justiça.
REFERÊNCIAS
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Sugiro a leitura deste blog https://rompaosilencio.blogspot.com/?zx=3e17bcc4167fba8e
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